Explicar minha relação com a doença obrigatoriamente passa pelo fato de que eu já quis ser cirurgiã oncológica. Racionalmente isso justificaria muito da minha aparente calma durante a investigação e o diagnóstico, mas a calma era apenas superficial.
Ir ao oncologista e ter câncer não era o mais assustador pra mim. Quando estudante tive a experiência de acompanhar o cuidado a diversos pacientes oncológicos e me afeiçoar a alguns deles. Três desses pacientes explicam muito do que foi para mim o início do processo.
Uma das minhas melhores experiências enquanto estudante foi acompanhar uma senhora com câncer de mama, sem possibilidade de cura. Dos momentos onde ela desejava a morte devido a dor aos momentos onde ela escolhia como viver seu último Reveillon. Digamos que esse é meu fantasma dos Natais passados. Quase todo mundo que trabalha comigo já me ouviu contar a história da paciente cujo nome eu esqueci, mas que marcou profundamente a minha vida e me apresentou o cinema clássico. É ela que me lembra que há beleza mesmo nos momentos tristes, nunca vou me esquecer daquela senhorinha frágil vestida como sua estrela de cinema preferida.
Meu fantasma do Natal presente era mais assustador. Faz parte das recordações tristes da época da faculdade. É no momento do diagnóstico era com ele o elo mais forte. Ele tinha 15 anos e eu 19. Ele tinha uma massa no lado direito do pescoço. Ele tinha um linfoma de Burkitt. Ele segurou minha mão durante a biópsia da massa e apertou-a com força durante a biópsia da medula. Ele ficou completamente careca durante o tratamento e eu o fazia prometer que ia virar lutador quando melhorasse, a gente ria muito quando eu ia examiná-lo no isolamento. Até ele receber alta no fim da quimioterapia e voltar um dia com uma paralisia facial. A doença tinha voltado e invadido o sistema nervoso central. Apesar de tudo que se tentou, a doença venceu no final. Ler na biópsia que havia a possibilidade de ser Burkitt também, só me fazia lembrar disso. Quando conversei a primeira vez com a hematologista essa era a única lembrança que eu tinha em mente. Não sei de verdade o que me fez contar essa história para ela, mas sei que foi como ela conseguiu ouvir que definiu que eu acompanharia com ela. Sabendo do que me assombrava no diagnóstico, ela conseguiu ir desconstruindo meu medo pouco a pouco.
Meu fantasma de Natais futuros era uma moça jovem, uns 36 anos, mãe de dois filhos, com um câncer de estômago muito agressivo. Lembro das nossas conversas antes da cirurgia sempre preocupada com o futuro dos filhos. A morte dela por complicações no pós-operatório foi algo que me perturbou muito na época. A dúvida se deveria ter deixado ela ir embora sem tratar ou convencido a operar me torturou vários meses, tempo o suficiente para eu desistir de ser cirurgiã, tempo o suficiente para por alguns meses eu questionar se deveria ter sido médica. Sempre que pensava sobre o futuro me vinha o medo de assim como ela não poder criar meu filho.
Resumindo, eu entrei no tratamento com muito medo. Medo da doença não curar, medo dela sumir e voltar, medo de ter infecção. A perspectiva de lidar com um linfoma de Burkitt era completamente paralisante e eu tinha medo de não chegar até o final do tratamento.
Sopa de letrinhas
Tudo que me ocupa enquanto trato um linfoma
segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
domingo, 15 de janeiro de 2017
Como Alice no buraco do Coelho
Existem bilhões de pessoas e existem vários
tipos de câncer. Esse é o relato da minha experiência com um câncer. É pessoal
e, provavelmente, é diferente da experiência de outra pessoa com outro tipo de
câncer ou mesmo de outra pessoa com o mesmo tipo de câncer.
Em 2016, cerca de 5000 pessoas no Brasil
tiveram o diagnóstico de um linfoma não Hodgkin (LNH). Eu fui uma delas.
Especificamente eu fui diagnosticada com um linfoma não Hodgkin tipo B de
grandes células, um tumor bastante agressivo e, por isso, bastante sensível a
quimioterapia.
Eu sou médica. Isso às vezes é bom. E algumas
vezes, não tão bom. O ano tinha começado com muito trabalho, pois eu tinha
assumido um desafio profissional que era gerenciar uma das maiores emergências
da minha cidade. Além disso, eu era aluna de mestrado. E também sou esposa,
filha, mãe e irmã.
Nos sete primeiros meses do ano meu tempo
parecia escorrer pelas mãos. Tínhamos acabado de realizar um curso sobre saúde
mental e urgências, ainda colhíamos os frutos da capacitação nas nossas
equipes. Já tínhamos nos lançado em um novo projeto, um curso de emergências
clínicas, que também já começava a render alguns frutos. Eu tinha conseguido
deixar meu projeto de pesquisa pronto para qualificação e para análise do
comitê de ética. Eu já tinha outros projetos de treinamentos e de processos
educativos engatilhados com outros parceiros.
Agosto foi o mês mais curto que um ano poderia
ter. Para mim teve apenas doze dias. Porque no dia 12/08/2016, tudo começou a
mudar e a sensação é de que daquele dia em diante o tempo contava diferente
para mim.
Fui levar meu filho para assistir Suécia e
China no futebol feminino, jogo tranquilo, bom para desestressar e levar
crianças. Os momentos daquela noite são a lembrança mais forte que tenho desse
ano, outras coisas se misturam na memória sem muita relação tempo/espaço.
Depois de botar meu filho para dormir, percebi, no espelho, um caroço do lado
direito do pescoço bem perto da mandíbula. Dormi pensando que poderia ser
caxumba.
Menos de oito horas depois, eu estava pedindo
opinião do infectologista. De cara ele já viu que era um linfonodo e, portanto,
não era caxumba. Com pedido de sorologias e ecografia, começamos a investigar
causas infecciosas. Mas eu tinha exames anteriores, afinal estava grávida três
anos atrás. Resolvi checar esses exames e logo percebi que poucos exames novos
poderiam dar uma resposta. Colhi sangue e fui para uma exposição de arte alemã
aguardar a hora de fazer a ecografia. Na cabeça começavam a se delinear os
raciocínios diagnósticos aos quais eu teriam de ser submetida. Eu tinha noção
de que algumas doenças graves teriam que ser investigadas: AIDS, tuberculose,
linfoma.
A ecografia mostrou os prós e contras de
conhecer quem te examina. Se o exame começou descontraído pela conversa,
terminou tenso com dificuldade de conversar. Na ecografia mostrava que os
linfonodos em geral estavam pouco aumentados, com apenas dois maiores, só que
esses pareciam estar perdendo o formato habitual. Não dava para afirmar que era
câncer, mas também não dava para dizer que não era. O radiologista me ajudou a
pensar quais de nossos amigos trabalhavam com câncer. Marquei consulta para o
fim da tarde e liguei para o infectologista contando os exames da gravidez e a
ecografia.
O oncologista me examinou. Além dos linfonodos,
a amígdala também estava aumentada. Mesmo sem sinais de infecção optamos por
tratar com antibiótico enquanto aguardava o resultados das sorologias e fazia
uma tomografia para ver melhor os gânglios. Consegui fazer o exame no dia
seguinte, bem cedo. Agora era passar o dia aguardando o laudo e também pegar os
resultados dos exames de sangue. No meio da tarde, os resultados já descartavam
AIDS e várias outras infecções. O infectologista optou por um exame mais
específico para tuberculose. No fim da tarde a radiologista me liga, porque a
chuva me impediria de buscar o laudo, e se oferece para mandar imagens e laudo
virtualmente. Ela me pergunta sobre os exames de sangue e me diz que a imagem
não parece de tuberculose.
Liguei para um dos R2 de cirurgia que fez
cirurgia oncológica e em quem eu confio de olhos fechados. Eu precisava que ele
olhasse as imagens, me ajudasse a ver o que estava acontecendo. Nos tempos de
internato e residência muitas vezes vimos tomografias juntos, eu me inspirava
em ser igual a ele, de certa forma acho que foi o que eu precisava naqueles
momentos para entender o que viria pela frente. Mas do que uma consulta foi a
hora onde minha cabeça alinhou que eu era médica mas estava me tornando
paciente.
O exame para tuberculose, IGRA, vem negativo. O
PET-Scan mostra linfonodos cervicais, amígdala e linfonodos mediastinais
acometidos. A biópsia já é feita sabendo que as chances de não ser câncer são
baixas.
Dez dias após a imagem no espelho, ouço do
oncologista a confirmação de que é um linfoma agressivo, indeterminado entre
grandes células e Burkitt. É preciso consultar com a hematologista. É preciso
mandar amostra de tecido para Botucatu, para realizar mais testes...E, naquele
momento, as falas ao redor me parecem distantes. Parece que flutuo como Alice
ao cair no buraco do coelho...
-
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Apresentações
Vamos começar esse blog com as devidas apresentações, ok?
Meu nome é Carolina, ou Carol como todos conhecem.
Eu sou apaixonada pela vida e pelo mundo.
Comecei a sonhar com viagens quando ainda era pequena demais para pensar em como organizar uma. Assim que aprendi a ler (e eu lia muitos livros) passei a imaginar como seria viver as histórias dos livros. Me via nas Reinações de Narizinho e em todas as outras aventuras da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo.
Muito nova resolvi que iria morar em Liége-Bélgica e cismei de aprender francês. Aí começou minha relação de amor com a França e mais especificamente com Paris. Sonhei todas as noites com Paris desde meus 12 anos. Enquanto as outras crianças brincavam de casinha, eu me imaginava na Torre Eiffel, me via comendo croissants, sentada na porta da Notre Dame... Era como se algo de mim pertencesse àquela paisagem.
Engraçado que até meus dezesseis anos eu detestava geografia e história. Foi quando um estagiário de Geografia me deu aula e me ensinou a estudar como eu lia meus romances. De repente me vi andando em ruelas de cidades medievais, seguindo passos de heróis do passado e descobrindo novas paisagens. Foi assim que comecei a ler bibliografia, épicos e romances históricos.
No momento sem poder viajar desde que descobri um câncer do sistema linfático (linfoma) em agosto de 2016. Desde que adoeci voltei a ler mais e acabei voltando a escrever, inicialmente apenas para dar notícia a familiares e amigos que moram longe, mas depois virou uma espécie de terapia para exorcizar meus próprios fantasmas. Escrevo sobre o que sinto a cada momento do tratamento, sobre meus planos de futuro e sobre tudo que me ocupa o tempo enquanto cuido da saúde.
Meu nome é Carolina, ou Carol como todos conhecem.
Eu sou apaixonada pela vida e pelo mundo.
Comecei a sonhar com viagens quando ainda era pequena demais para pensar em como organizar uma. Assim que aprendi a ler (e eu lia muitos livros) passei a imaginar como seria viver as histórias dos livros. Me via nas Reinações de Narizinho e em todas as outras aventuras da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo.
Muito nova resolvi que iria morar em Liége-Bélgica e cismei de aprender francês. Aí começou minha relação de amor com a França e mais especificamente com Paris. Sonhei todas as noites com Paris desde meus 12 anos. Enquanto as outras crianças brincavam de casinha, eu me imaginava na Torre Eiffel, me via comendo croissants, sentada na porta da Notre Dame... Era como se algo de mim pertencesse àquela paisagem.
Engraçado que até meus dezesseis anos eu detestava geografia e história. Foi quando um estagiário de Geografia me deu aula e me ensinou a estudar como eu lia meus romances. De repente me vi andando em ruelas de cidades medievais, seguindo passos de heróis do passado e descobrindo novas paisagens. Foi assim que comecei a ler bibliografia, épicos e romances históricos.
No momento sem poder viajar desde que descobri um câncer do sistema linfático (linfoma) em agosto de 2016. Desde que adoeci voltei a ler mais e acabei voltando a escrever, inicialmente apenas para dar notícia a familiares e amigos que moram longe, mas depois virou uma espécie de terapia para exorcizar meus próprios fantasmas. Escrevo sobre o que sinto a cada momento do tratamento, sobre meus planos de futuro e sobre tudo que me ocupa o tempo enquanto cuido da saúde.
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